04/12/06

"A cidade líquida e outras texturas" de Filipa Leal. Um "eu" entre-parênteses.

Diga-se, antes de tudo, que é um objecto apetecível, que apetece levar para a cama e adormecer com ele, sobre ele, e ler outra vez e marcar e dobrar e estraçalhar.
Tem no seu interior uma fotografia bela da Mafalda Capela - a rima mais-que-perfeita.
A poesia da Filipa é radicalmente urbana e faz constantes alianças com a prosa. Dá atenção à língua e à própria dimensão social da vida quotidiana.
Digamos que o novo livro da Filipa Leal tem o quotidiano como ponto de partida mas, no momento seguinte, esse quotidiano é transfigurado, é ampliado, é transtornado.
Na escrita da Filipa as borbulhas são pontos de exclamação, os lábios são trampolins para o infinito, os olhos são archotes para comer a noite à traição, o suor é um rio que desagua e não desagua no mar da tranquilidade.
A escrita da Filipa molda-se à alma, é líquida, torrencial quase sempre, é forte - crava as garras certeiras na correnteza indomável da Vida. A escrita da Filipa não tem pé. Apanha-nos, muitas vezes, com a boca na Vida.
A escrita da Filipa é viciante. São três linhas psicotrópicas, imaculadamente brancas, de Poesia: a cidade líquida; nós, a cidade; a cidade esquecida. Cheirem a primeira linha - não pararão mais até ao orgasmo, até à libertação final:

A solidão atravessa a praça, triunfal, ganha cor, ganha corpo, e invade-nos em todas as artérias. Só a Amor a pode deter. "Nós reduziremos a arte à sua expressão mais simples que é o amor" (Breton). Só a caneta da Filipa pode inverter o rumo inexorável da História - debruçada numa das varandas da cidade gritas para a multidão:
-"Estamos rodeados de emboscadas - tanto melhor".
Filipa: entro no teu poema como se fosse vírgula...

...

A Filipa Leal é já uma das vozes importantes da "novíssima" poesia portuguesa. Ao lado de Daniel Jonas, Ana Paula Inácio, Manuel de Freitas, Jorge Gomes Miranda, José Miguel Silva, Rui Coias e certos outros poetas.
Deixo-vos com um dos poemas do seu mais recente livro "A cidade líquida e outras texturas" (Editora DERIVA):

A CIDADE ESQUECIDA

Para o António.

Ela disse: Sou uma cidade esquecida.
Ele disse: Sou um rio.

Ficaram em silêncio à janela
cada um à sua janela
olhando a sua cidade, o seu rio.

Ela disse: Não sou exactamente uma cidade.
Uma cidade é diferente de uma cidade
esquecida.

Ele disse: Sou um rio exacto.

Agora na varanda
cada um na sua varanda
pedindo: Um pouco de ar entre nós.

Ela disse: Escrevo palavras nos muros que pensam em ti.
Ele disse: Eu corro.

De telefone preso entre o rosto e o ombro
para que ao menos se libertassem as mãos
cada um com as suas maos libertas.
Ela temeu o adeus,disse:Sou uma cidade esquecida.
Ele riu.

1 comentário:

pat disse...

Sobre o novo livro da filipa Leal importante ler no último Mil Folhas (Público) a crónica do Educardo Prado Coelho (linda de morrer).